TRAGÉDIAS (EM) MUSICAIS NA OBRA “DANÇANDO NO ESCURO”


DANSER I MØRKET. Lars von Trier, 2000. 140min. dolby digital. color.

Dançando no Escuro (Danser i Mørket, 2000) é uma obra cinematográfica com roteiro e direção assinados pelo dinamarquês Lars von Trier. O filme é vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano de 2000, recebeu ainda o prêmio de melhor atriz, também no Festival de Cannes, para Björk, por sua brilhante atuação com a personagem Selma Jezková. O longa ainda foi indicado às diversas premiações de cinema, como: Melhor Canção Original, com “I've Seen It All”, no Oscar (2001); Melhor Atriz, com Björk e Melhor Canção Original, com “I've Seen It All”, no Globo de Ouro (2001); Melhor Filme Estrangeiro, no Cesar (2001) entre outras.

O filme Dançando no Escuro aborda uma triste e emocionante história de uma mulher por nome Selma, sonhadora, apaixonada por musicais e cinema, que tem uma grave doença degenerativa e hereditária, que causa cegueira completa. Nascida na antiga Tchecoslováquia (hoje duas nações, República Tcheca e Eslováquia) emigra para os Estados Unidos com seu filho Gene (Vladica Kostic), onde busca recursos a fim de conseguir pagar a cirurgia que seu filho necessita, para que o mesmo não fique cego. Selma e Gene moram em um trailer na propriedade do casal Bill (David Morse) e Linda Houston (Clara Seymour), compondo o restante do elenco principal temos Jeff (Peter Stormare), que visa interesse amoroso com Selma e Kathy (Catherine Deneuve), companheira de trabalho e grande amiga da protagonista, em que proporcionam cenas poéticas e tocantes.

A entrada do filme nos mostra matizes; cores opacas com desenhos abstratos junto às imagens embaçadas ao fundo, por vezes rostos, por vezes bocas, por vezes casas, outrora a linha de trem extensa por uma ponte entre outras imagens perceptíveis ou não, findando em um embranquecimento total por alguns segundos, logo após se inicia as cenas com os personagens. O que nos remete diretamente a doença e a sensação de Selma ao ficar cega gradativamente, além de remeter às artes, já que Selma é apaixonada por elas, tendo em vista, que essas mesclas de imagens, cores e traços formam telas artísticas multáveis.

Quanto à estrutura e temporalidade, a trama tem caráter bem definido, as ações e desenrolar da história seguem um tempo cronológico bem linear. Os espaços apresentados no filme são bem restritos e exibidos desde o início, sendo eles: o espaço de ensaio teatral, a fábrica, o trailer, a casa dos Houston, o caminho percorrido por Selma na volta do trabalho (os trilhos ferroviários) e o cinema. Posteriormente, são apresentados novos espaços: o fórum de justiça e o presídio.

Selma tem audição muito aguçada e qualquer emissão de som se torna música aos seus ouvidos, sua sensibilidade aos ritmos é notável, tanto é, que ao trabalhar, as ondas sonoras emitidas pelas maquinas impõem ritmos incontroláveis a Selma. Daí ela se transmuta psicologicamente para um musical e todos os que compõem aquele espaço se tornam artistas que cantam e dançam ao som produzido no ambiente.

Uma grande peculiaridade do filme são os musicais psicológicos de Selma, eles intercalam entre cenas reais e imaginarias. Esses musicais também funcionam como demarcadores de cenas e espaços importante, já que os musicais acontecem em espaços diferentes e com personagens diferentes, além de cada musical abordar uma temática especifica na vida de Selma.

O primeiro musical psicológico de Selma mostrado no filme acontece na fábrica, que simbolicamente, nos remete ao capitalismo, sistema político, social e econômico baseado no capital, que se opõe diretamente ao sistema do país de origem de Selma, o Comunismo. O segundo musical acontece nos trilhos da linha ferroviária, que simbolicamente, nos sugere a um caminho, uma trilha que direciona Selma, já que com o avanço de sua doença, ela não consegue mais andar de bicicleta e se guia através dos trilhos. Nesse musical, Jeff descobre que Selma está praticamente cega. O catalisador para esse musical é definitivamente os sons emitidos pelo trem e pelo questionamento de Jeff, sobre sua cegueira, que de forma poética e lírica a protagonista refuta todos os questionamentos de seu amado, cantando que já viu de tudo e não há nada mais para ser visto, através da canção “I've Seen It All”.

O terceiro musical psicológico se sucede na casa dos Houston e em seu entorno, após a morte de Bill, que simbolicamente, pode nos aludir ao fruto do capitalismo e consumo compulsório, pois Linda já gastara toda a herança de Bill, e o mesmo dizia não conseguir parar de satisfazer os caprichos da esposa, um cúmplice do outro nos gastos que levam Bill a um emaranhado de mentiras feito por ele mesmo. O quarto musical psicológico ocorre no local onde Selma tem aulas de teatro, horas após matar Bill. Esse espaço é o local pleno e de fantástica perfeição para Selma, simbolizando as artes, principalmente, artes as cênicas (ópera, dança, teatro, happening).

O quinto musical psicológico acontece no seu julgamento, quando o promotor começa a falar sobre os gostos de Selma pelas artes e o barulho dos lápis do dos júris em contato com o papel. Nesse musical ela se atém ao ex-ator de filmes e musicais que testemunha. O fórum pode nos simbolizar a injustiça, pois a ré condenada à forca. Por fim, o sexto e último musical psicológico acontece no “corredor da morte”, onde ela conta os passos até chegar ao local de enforcamento. Esse musical se dá pelo som produzido pelos passos (marcha) propositais da agente carcerária, Brenda (Siobhan Fallon) para que Selma tenha forças e vá até seu derradeiro espaço em vida.

Na câmara de enforcamento, Selma canta uma canção enquanto todos esperam ordens superiores para que se concretize o enforcamento, enquanto a angústia toma conta do ambiente por parte dos personagens que assistem a execução, a protagonista canta a dita “penúltima canção”, fazendo alusão à sua tática usada ainda na época em que vivera na Tchecoslováquia, para que os musicais no cinema nunca tivessem fim; saía do cinema após a penúltima canção cantada. Seu enforcamento se dá em meio ao canto emocionante da personagem, comovendo os que vão ao cumprimento de sua pena e consequentemente aos expectadores do filme.

Esta obra apresenta certo paradoxo, visto que, apesar dos musicais e cenas alegres, o “final feliz” tão aguardado não vem, desconstruindo a ideia de que musicais não são trágicos. A trilha sonora da apresentação dos créditos traz grandes reflexões acerca de aspectos que a obra aborda: “Se viver é ver / Prendo a respiração” [...] “Um novo mundo/ Um novo dia para ver / Ver”. Na primeira parte do fragmento exposto, demonstra-se que para viver não basta apenas ver, pois Selma estava cega e estava vivendo, porém a respiração é o determinante, ou seja, o que fazemos e como conduzimos a vida é o que determina o viver. Já no segundo trecho, elucida-nos que a mudança desse “olhar” deve acontecer para que um novo mundo se apresente para que possamos ver além do mero ver.

22h00min 24/07/2014 

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